Projecto Arquivos e Estudos do Miguelismo

O miguelismo na imprensa brasileira

Nívea Carolina Guimarães (Professora do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais)

Os anos que correspondem ao reinado de D.Miguel I, 1828 a 1834, representaram uma inflexão das atividades do periodismo liberal em território português. Os periódicos liberais censurados pelo regime miguelista passaram a ser publicados no exílio, especialmente na Inglaterra, a exemplo dos jornais O Precursor (1831) e Correio dos Emigrados Portugueses (1831). Quanto à manifestação periódica no Brasil, essa pouco fazia lembrar o cenário da antiga Metrópole, já que os últimos anos do reinado de D. Pedro I (1822-1831) e o período das Regências (1831-1840) foram de intensa atividade periódica. Os jornais e os panfletos se tornaram o lugar da discussão pública, onde os principais grupos manifestaram suas opiniões em relação à abdicação do Imperador (MOREIRA, 2011, p.142). Enquanto espaço de construção do debate político, os periódicos teceram os diferentes projetos de construção do estado e da nação, colocados à prova no jogo de forças da elite imperial e escravista. Esses projetos também caminharam sob a luz das diferentes teorias e doutrinas políticas que circularam ao longo do século XIX entre os continentes. O fluxo de pessoas promovido pelos movimentos migratórios, intensificados pelos exílios políticos sul-americano e europeu, fomentou a circulação de ideias, que foram lidas e interpretadas a partir das dinâmicas e disputas locais. O movimento miguelista e seus desdobramentos, logo, se tornaram temas de debate na política brasileira, lidos a partir do viés político adotado pelos jornais.

O periódico A Aurora Fluminense (1827-1835) foi eleito para esta abordagem por ser um dos periódicos de maior circulação na Corte e por sua longevidade, quando as publicações se caracterizavam por sua curta duração. Redigido por Evaristo Ferreira da Veiga (1799-1837), A Aurora representou os liberais na defesa do justo meio, sendo a moderação o norte do grupo (BASILE, 2004, p.42). As mudanças sociais deveriam, portanto, ocorrer de forma paulatina para que se preservasse a ordem pública. Para o periódico que buscava se afastar dos extremos políticos, a contrarrevolução miguelista surgiu como representante do pólo mais próximo do Absolutismo. Mas o miguelismo não orbitava sozinho essa posição: se em Portugal, D.Pedro IV foi a liderança que conduziu a retomada liberal, para os liberais do Brasil, em especial, para os moderados da Aurora Fluminense, D.Pedro I passou a ser visto como exemplo do retrocesso. Fatores como a manutenção do Poder Moderador, a crise sucessória portuguesa e seus desdobramentos fomentaram a construção da imagem do primeiro Imperador entre os liberais. Em dezembro de 1831, na análise da situação política de Portugal, A Aurora equiparou ambos os filhos de D.João VI que disputavam o poder e que deste modo submetiam os portugueses a escolher qual deles “valia menos sobre o trono” (A Aurora Fluminense – 12 dez. 1831, n. 568, p. 2406.).

As discussões em torno da conjuntura portuguesa se tornaram mais evidentes com a presença dos emigrados portugueses no Brasil. O exílio político liberal que ocorreu em decorrência da contrarrevolução miguelista alterou o percurso da vida dos muitos sujeitos que tiveram de deixar sua pátria, assim como daqueles que ficaram. Os exilados foram alocados em depósitos temporários durante o seu percurso pela Europa, como em Plymouth, na Inglaterra. A manutenção das suas despesas ficava à mercê da instável diplomacia daquele momento, expondo-os às difíceis circunstâncias de sobrevivência. Com o fechamento do depósito em Plymouth, cujas causas envolviam justamente a responsabilidade pelos recursos, a exemplo do pagamento dos soldos aos militares, decorreu-se a ordem de embarcarem para o Brasil (SILVA, 2022). A notícia poderia não agradar a todos, motivos não faltavam, como a distância dos familiares e os rompimentos dos vínculos estudantis na Europa. Entre os brasileiros que integraram o grupo de emigrados portugueses, verificou-se a presença de estudantes vinculados ao Batalhão de Voluntários de Coimbra.

O Batalhão dos Voluntários Acadêmicos de Coimbra organizado em 1826, teve um papel importante em 1828 na luta contra as guerrilhas miguelistas empenhadas na defesa do novo regime. Ao contrário do que comumente se supõe, a atuação do Corpo estudantil, ainda que ideológica, não foi unicamente simbólica. Com armas nas mãos, os estudantes contribuíram para a vitória momentânea das forças liberais nos anos de 1826 e 1827. O envolvimento direto de boa parte do corpo estudantil na Revolução Liberal do Porto, em maio de 1828, levou ao fechamento da instituição. Para D. Miguel, a Universidade deveria ser um instrumento de reforço da ideologia do Trono e do Altar. Foi o que ocorreu quando da reabertura da instituição em 1829, debaixo da vigilância política contrarrevolucionária. Apesar do viés doutrinário, os dados da repressão associados ao número de matriculados demonstram que a maioria dos estudantes estavam alinhados a causa liberal (OLIVEIRA, 2024, p.7).

À Aurora Fluminense não escapou a presença dos emigrados no Rio de Janeiro e nas demais províncias e, em 1828, o periódico contabilizou cerca de mil e oitocentos emigrados. Um número que pode ser questionado ao ser confrontado com outras fontes e ao se focalizar o posicionamento político do periódico que poderia aumentar tal número para endossar seus argumentos. As críticas às enormes somas que o Brasil já havia despendido com os “emigrados, com a Srª.D. Maria II, e as coisas de Portugal” fazem ressaltar como a Aurora percebeu as consequências daquela conjuntura para o Brasil, mas não se tratava de uma questão econômica, apenas (A Aurora Fluminense – 19 dez 1829, n. 204, p. 849). No momento em que a construção do “ser brasileiro” coincidiu com os conflitos antilusitanos, os emigrados representaram um fator adicional às dissensões entre brasileiros e portugueses, algo que perpassou, por exemplo, a disputa pela ocupação de cargos administrativos (RIBEIRO, 2022).

A Aurora defendeu que a transferência para o Brasil dos emigrados e o trato com um Povo estrangeiro tinham o potencial de mudar as opiniões e fazer nascer “objetivos novos e muito remotos daqueles que despertavam o entusiasmo pela Liberdade”, afinal, se em Portugal eram vistos como defensores da causa liberal, no Brasil, podiam apoiar a causa de D.Pedro I, isto é, transformarem-se em agentes do despotismo (A Aurora Fluminense – 23 fev.1829, n. 157, p.646). A presença dos emigrados portugueses no Brasil tornou-se pauta das discussões entre os periódicos, o que evidencia a sua relevância no processo de abdicação de D.Pedro I (GONÇALVES; SILVA, 2024, p.5). O miguelismo esteve presente nas páginas da imprensa brasileira, incitou críticas e fomentou debates, pois para o Brasil recém-independente, os desdobramentos da contrarrevolução portuguesa tinham um peso significativo na sinuosa balança entre rupturas e continuidades.

 

FONTE:

A Aurora Fluminense – Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. https://bndigital.bn.br/acervo-digital/aurora-fluminense/706795

REFERÊNCIAS

BASILE, Marcello. O Império em construção: projetos de Brasil e ação política na Corte regencial. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2004.

GONÇALVES, Andréa Lisly.; SILVA, Luiz Gustavo Martins da. A contrarrevolução miguelista e o exílio político liberal: Portugal e Brasil (1828-1834). Almanack, v. 1, p. 1-36, 2024. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2236-463336ed30223. Acesso em: 20 dez. 2024.

MOREIRA. Luciano da Silva. Imprensa e opinião pública no Brasil Império: Minas Gerais e São Paulo (1826-1842). Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2011.

OLIVEIRA, Kelly Eleutério Machado. Brazilian students in Coimbra: The Academic volunteer Battalion and the defense of liberalism in Portugal (1826-1828). Nuevo Mundo-Mundos Nuevos, v. 1, p. 1-15, 2024. Disponível em: http://journals.openedition.org/nuevomundo/96200. Acesso em: 20 dez. 2024.

RIBEIRO, Gladys Sabina. A liberdade em construção. Identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado. 2ª ed. Rio de Janeiro: Eduff, 2022.

SILVA, Luiz Gustavo Martins da. Entre penas e impressos: a experiência política de exilados liberais na Europa e no Brasil (1826-1837). Belo Horizonte: Fino Traço, 2022.

[1] Professora do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais. Doutoranda em História pela Universidade Federal de Ouro Preto, realizou o Doutorado Sanduíche na Universidade NOVA de Lisboa financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (PDSE-CAPES).

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